quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A impostura da pseudo travessia de Aécio





A coluna de Aécio Neves, no jornal Folha de São Paulo, desta segunda-feira (31/10) é um misto de presunção e de charlatanismo.



Presunção, porque ele se apresenta como que reunindo autoridade política para criticar o presidencialismo de coalizão e os malfeitos daí decorrentes. Ora, ele praticou (e seu sucessor em Minas pratica) o “governadorismo” de coalizão; e os malfeitos de seu governo, legados à gestão Anastasia, são extensos e intensos. Uma parte significativa deles repousa na mesa do Procurador Geral da República, Dr. Gurgel, e diz respeito a ele diretamente, junto com a irmã, na trama de verbas de publicidade, a famosa rádio Arco Íris, com fortes indícios de ocultação de patrimônio, sonegação fiscal e improbidade administrativa.


Charlatanismo é outra marca de seu escrito. Ele viola as regras básicas de, pelo menos, três ramos das ciências humanas: a politicologia (ou, simplesmente, política), a história e a sociologia, ao condensar – sem qualquer comprovação documental – dois períodos complexos dos fenômenos de um passado recente e da contemporaneidade. Ele trafica a ideia de que os anos JK e de Jango representariam um momento de forte identificação do povo com a política e os políticos. E que agora teríamos a desidentificação entre os dois atores, em face da prevalência de governos de coalizão e de suas consequências corruptoras. Nada mais equivocado.
E na sua pseudo ciência, Aécio tenta introduzir o avô, Tancredo, como parte destacada daquela história vivenciada pelas figuras de JK e João Goulart.

Em primeiro lugar, o “povo” urbano e participante da política na época de Juscelino era restrito. Os ecos do coronelismo eram fortes e definiam o caráter da identificação entre políticos e povo. Sobretudo porque essa dimensão “rural” da política ainda pressionava as cidades e resultou em duas tragédias: Jânio Quadros com sua “vassoura” e o golpe militar de 1964, ambos de triste memória. O texto do senador Aécio Neves, ao omitir as consequências do período que defere, só mostra seu descomprometimento com o rigor analítico que se demanda no tratamento da história, principalmente quando recente.

Em segundo, o fazer político da época dourada que ele enxerga em seu método alucinógeno de análise, integra plenamente a corrupção, que permeava as gigantescas obras de infraestrutura daquele período, ajudando a formar as fortunas e as elites contemporâneas. E a travessia que houve, de fato, se completa com as privatizações da era em que foi deputado federal, líder do governo FHC e presidente da Câmara. A análise científica e, porque não dizer, policial, do processo de privatizações ainda vai demonstrar que o período da história brasileira em que o patrimônio público foi mais dilapidado é exatamente aquele em que seu partido, o PSDB, e ele próprio, tiveram mais poderes.

As reveladoras gravações dos “grampos do BNDES”, a Pasta Rosa, o Proer (e sua clandestinidade) e o SIVAM associam-se ao uso intensivo de ativos podres na “compra” de estatais, na desnacionalização de grande parte da economia, na desregulamentação de direitos trabalhistas e sociais, na proliferação das ONGs, consultorias e terceirizações que são a porta de entrada dos ditos malfeitos com a coisa pública. Inclui-se aí o período da consolidação da legislação que trata dos processos licitatórios para obras e serviços públicos, no qual poderiam ter sido reguladas as problemáticas aditivações de contratos, fontes importantes para desvios. Afora o pagamento comprovado de votos para se aprovar o instituto da reeleição que beneficiou diretamente FHC!

Aécio, até pouco tempo, insistia em estabelecer um vínculo pessoal com uma idade do ouro que – virtualmente – teria representado Tancredo. Virtual em face do desfecho trágico de sua carreira política em abril de 1985. Agora, ele vai mais longe. Estende a idade do ouro aos tempos de Juscelino e Jango, e tenta inserir seu avô no mesmo patamar de figuras que fizeram história na época. Falseia, mais uma vez, a densidade histórica dos atores citados. Tancredo Neves se torna uma figura “nacional” na vitória sobre Maluf, na eleição indireta, e nos poucos meses que viveu a condição de “presidente eleito”, na triste agonia de sua doença e morte.

Mesmo no processo de redemocratização, sobressaíram Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Lula, Teotônio Vilela e outros. Tancredo teve aí uma postura discreta e conciliadora, o que lhe valeu ser aceito pela cúpula militar como a alternativa para a transição conservadora. Enfim, foi um sobrevivente da conturbada conjuntura da década de 1950, quando soube se equilibrar entre o conservadorismo e a atabalhoada “modernidade” que se impunha aos atores políticos. E, na década de 1980, quando – entrincheirado em sua discrição – cumpriu um papel restrito, tolhido pelo desfecho lamentável de sua doença.

Colocá-lo no mesmo patamar de JK, que desde a revolução constitucionalista de 1932, atuou na política e na história brasileiras é um exagero. Antes dele, figuras como Getúlio Vargas, Juarez Távora, Clóvis Salgado, Lott, Carlos Luz, Prestes, João Goulart, Jânio Quadros, Lacerda e muitos outros, ocuparam um lugar proeminente na história política do país, independentemente do juízo de valor que se faça de qualquer um deles. Ao contrário da distorção histórica que insinua Aécio, na intensa e extensa travessia do Brasil arcaico ao contemporâneo, a identificação da política com malfeitos, coronelismo, patrimonialismo, apadrinhamento, heranças familiares (políticas e econômicas), falências de bancos é algo, como diria Ulysses Guimarães, ontológico. Ou seja, está no “ser” das relações políticas, econômicas e sociais de todo o processo civilizatório e que se agudizam desde os tempos da Revolução Industrial na Inglaterra.
Finalmente, uma clara demarcação. Aécio, na inauguração da sede administrativa de governo mineiro em 2010, manifesta sua megalomania e intenção se ter um papel histórico proeminente. Quis ele se colocar numa linha de continuidade que começa com JK, teria passado por Tancredo e culminaria com sua chegada ao Palácio do Planalto. Detalhe: a distância histórica entre ele e JK é diretamente proporcional à magnitude de Brasília em relação aos prédios construídos com dinheiro da CODEMIG, em flagrante desvio de finalidade e missão.

Se há algum ponto que identifica JK e Aécio é, genericamente, seus estilos de bon vivant.Mesmo aí há substantivas diferenças: o primeiro era um pé de valsa light, elegante, gentil com as mulheres, marido dedicado e pai presente.



Minas sem Censura



 

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